Christchurch visto do lado de dentro...



Ontem escrevi se calhar um dos posts mais confusos que tenho memória mas ainda não tinha dado tempo de processar tudo.

Apesar de os helicópteros ainda se ouvirem a toda a hora, hoje, 36 horas depois e com um dia de alguma normalidade à mistura já se torna um pouco mais fácil escrever. Escrevo "alguma normalidade" porque o dia foi totalmente diferente do que estava planeado. O plano do nosso dia de hoje (Sábado) estava dividido em três eventos: danças de ballet da Sofia, almoço (francesinha) em nossa casa com um casal amigo e as filhas e à noite um concerto no Town Hall.
Ao acordar tivemos a confirmação que a aula de ballet se iria realizar mas que a escola entendia que as crianças não fossem. Optamos por ir de forma a termos alguma normalidade. A aula aconteceu mas com metade das crianças que é normal. De seguida foi altura de falar com a nossa família para reforçar e tranquilizar que estava tudo bem.
Os planos começaram a ficar mais alterados de seguida. O concerto foi adiado (para data indeterminada - assim como todos os eventos com grandes multidões) e por isso ficamos sem planos para a noite. No almoço em nossa casa tínhamos uma amiga que é médica (de cirurgia) que tinha sido chamada de emergência no dia anterior para o hospital e telefonou-nos a pedir desculpa e explicou que não vinha para descansar. Acabamos por fazer o almoço com menos uma pessoa. Pelo menos a Sofia brincou com as outras meninas no trampolim. Depois dos nossos amigos irem embora tivemos muitas horas de desenhos animados em família ("Coco" e "Leap" foram os filmes) e mais uma visita de um amigo que depois levamos a casa.

Foi um dia a evitar ver notícias, mas obviamente que foi motivo de algumas das conversas em vários momentos. Ouvir e ver mesmo com olhos de ver notícias, só as declarações da Primeira Ministra à comunidade Muçulmana local. Tal como escrevi ontem, sinto que a reação da Primeira Ministra tem sido à altura dos acontecimentos. Tenho orgulho da forma ela como comunicou.

Grande parte de reflexão do dia de ontem também aconteceu hoje. Passa pelo que vivemos, pelo que conhecemos mas também pelo que sentimos e pelo que vemos da reação ao ataque.

Começo por dizer o que não vi o video que tem sido partilhado um pouco por todo lado. Ou melhor, vi apenas os primeiros segundos pois os videos acabaram por aparecer um pouco por todo lado (desligava sempre que via que iriam passar). Não os vi principalmente por uma razão: recuso-me a dar esta plataforma ao terrorista que praticou este acto. Não li manifesto nem quero saber ou discutir essa pessoa visto ser isto que ele queria.
Nisto comparei como os três principais telejornais Portugueses deram esta notícia: a RTP, que acho que fez a reportagem mais correcta (recusou-se a transmitir qualquer parte do video) no sentido de como se faz um serviço à comunidade neste tipo eventos. A SIC, que esteve no limite do aceitável (foi aqui que acabei por ver mais segundos do vídeo e embora bem mais do que queria ter visto mas nada de incrivelmente grave). A TVI, que sinceramente não vi a reportagem toda porque dos poucos segundos que vi já a considerei uma reportagem nojenta de exploração de um evento deste nível de sofrimento. Esta última, assim como a CMTV (pelo que ouvi, visto que não liguei este canal ) para mim mostraram o mais baixo nível que há na comunicação social. Note-se que nenhum telejornal local ou das maiores redes de comunicação partilhou algo sequer parecido.

Infelizmente Christchurch já está habituada a eventos de grande visibilidade. Até hoje foi sempre a natureza a "pregar-nos partidas". Nestas alturas torna-se rotina ser contactados por jornalistas. Sem exagero ontem num espaço de 2 horas fomos contactados por mais de 13 jornalistas diferentes, de diversos meios de comunicação, desde a rádio até televisão. Por email, facebook, twitter ou até por telefone (ainda não sei como tinham o meu número). Recusamos falar com todos pois arriscamos sempre falar com um meio de comunicação que depois transmite informações de forma incorrecta (como aconteceu há dois anos com um televisão Portuguesa em que abriram o noticiário sobre um terramoto com imagens de outro que não tinha nada a haver e onde tinha havido diversas mortes).

Mesmo nos jornais, hoje li numa publicação do Público por Sofia Lorena (não vou partilhar o artigo por o considero extremamente pobre e incorrecto), que "país com 1,2 milhões de armas nas mãos de privados, são pouco receptivos à imigração muçulmana". Não entendo onde vão buscar esta informação. Principalmente quando a primeira mensagem que chegou a público foi de apoio.

Nesse aspecto a comunicação social de maior dimensão (por exemplo, Reuters) ou a da Nova Zelândia (por exemplo, o Stuff) foram muito muito mais dignas.

E agora porque escrevo estes textos com tanto sentimento. Não sou Muçulmano e por isso algumas das mensagens que recebi foram de amigos ou conhecidos que imaginavam que não seria connosco visto ter sido numa mesquita. A verdade é que somos todos emigrantes. Eu não sou menos emigrante que as vítimas deste ataque. Mais, a nossa primeira casa na Nova Zelândia era ao lado da mesquita (estamos a falar de menos de 40 metros do edifício da mesquita à nossa janela). A vista quer do primeiro quarto que a Sofia teve na sua vida quer da nossa cozinha era para a mesquita. Nas sextas-feiras (tal como esta) os carros das pessoas na mesquita estacionavam em frente à nossa casa.

Por lá termos vivido a escola da Sofia ficou sempre no mesmo sítio (não a trocámos de escola quando nos mudámos). Essa escola é a 650m de distância da mesquita e o ataque aconteceu quando ela estava na escola.

Ou seja,  eu estou certo que já me cruzei imensas vezes com a comunidade alvo deste atentado (e nunca senti ou presenciei nenhum sentimento contra esta comunidade). Passo no local praticamente TODOS os dias... quer seja a correr como o faço no fim de semana ou de carro quando o fazemos na semana.

E indo para a tarde propriamente dita:
Soube das notícias pela Catarina, mas na altura parecia tudo uma notícia "light" num dos jornais locais. Apenas que se tinha ouvido tiros perto da mesquita. Como morávamos lá chamou-lhe a atenção e por isso enviou-me. Em minutos toda a gente da empresa começou a ler a notícia e a Catarina ligou para a escola visto ser lá perto. Mas ainda era tudo muito ténue. Apesar de ter sido apenas uns minutos depois de tudo ter acontecido a escola já tinha entrado o lockdown (trancado as portas - ninguém entra ou sai).

Sinceramente aqui está a razão que de alguma forma nunca me senti muito assustado, visto pelo menos já tínhamos tido comunicação entre nós. As notícias ainda era todas muito incertas.
Até que se soube do segundo ataque e aí a informação ficou muito muito confusa. Falava-se em ataques em várias zonas da cidade (incluindo hospital) e recebemos mensagens da polícia no telemóvel a dizer que todo o CBD (Central Business District) estava em lockdown. Ainda recebemos mensagem automática da escola que a escola estava em lockdown e para NÃO ir buscar crianças. Nenhuma criança podia sair (note-se que os pais que fossem buscar as crianças podiam entrar numa zona separada da escola para também estarem abrigados mas não na zona das crianças). Pensamos que seria só a escola da Sofia por ser perto, mas percebemos depois que todas as escolas da cidade entraram em lockdown, os nossos colegas estavam todos a receber mensagens. Sem excepção.
Nesse momento a minha empresa trancou as portas (embora fosse possível sair, não era permitido entrar). Ainda havia alguma normalidade no trabalho, mas as pessoas já só liam as notícias e no último piso (sala de convívio com televisão gigante) acompanhava-se as notícias e começava-se a ouvir declarações da primeira ministra que davam a entender que a situação estaria relativamente controlada mas sem certezas.


Nesta altura as ruas da cidade estavam desertas. Já tínhamos recebido mensagens no telemóvel que os transportes públicos estavam parados e que a UBER estava com os serviços suspensos na cidade toda.



Dentro dos edifícios vivia-se alguma tranquilidade. A única diferença foi que as pessoas mantiveram-se dentro dos mesmos até mais tarde do que o normal, visto muitos estarem à espera que as escolas abrissem.
Quando, já muito depois da hora de eu sair, recebi uma mensagem que podíamos ir buscar as crianças à escola apressei-me a ir para o carro e aproveitar enquanto o transito ainda não retomava e consegui chegar à escola em menos de 5 minutos (o cordão da polícia à volta da mesquita ia até junto da escola da Sofia mas ainda dava acesso). O grande problema em termos de transporte começou aí, visto ter de ir buscar a Catarina e todos os caminhos para a empresa dela passarem pela mesquita ou perto.  Resolvi dar uma volta maior, mas como não sabia onde tudo estava acontecer acabei por várias vezes dar de caras com outros locais onde estava a haver operações de polícia (inclusive onde apanharam o terrorista - que não estava a ser noticiado por isso não se conseguia perceber). Um caminho que demora menos de 10 minutos acabou por demorar cerca de 50 minutos. Daí até casa até foi bastante normal mas via-se polícia e exército em todo sitio. Todos os carros à paisana da polícia (muitos mais do que alguma vez pensei) estavam todos com sirenes.

(à esquerda desvio ao lado do escola da Sofia - em frente estava a mesquita e à direita exército no CBD)

Durante a noite, com a cidade já completamente parada, voltei perto da mesquita, desta vez para ir levar um dos nossos antigos vizinhos (de quando morávamos lá) que entretanto tinha ido para nossa casa fazer tempo até poder ir para casa.

Uma das estradas mais movimentadas da cidade numa sexta-feira à noite, depois do evento...

A Nova Zelândia é um país fantástico e de certa forma ainda um pouco inocente, no sentido mais positivo possível. Deste evento vou querer recordar esta resposta da comunidade, de ajuda e até dos nossos políticos. Se calhar a segunda razão pela qual não quero ver o vídeo é que não quero dar a estes terroristas o que eles querem. Quero passar na mesquita sem recordações de imagens de violência gratuita, mesmo sabendo o que se passou lá.

Lamento todas as mortes e ainda não sei de que forma as pessoas na escola da Sofia ou nos nossos trabalhos foram afectadas mas juntos vamos seguir em frente. De certo haverá outros desafios na vida, mas temos de continuar, tal como a cidade continuou depois dos terramotos. É triste ver os cones de novo na cidade de novo por uma razão destas mas é bom ver que estão de novo com flores (ontem, nas fotos, ainda não estavam mas hoje já estava).

Lamento ainda que tantos meio de comunicação pelo mundo (e em particular de Portugal) sejam tão pobres de conteúdo e profissionalismo (em parte eles acabam contribuir para estes mesmo eventos) e até daqueles que apoiam estes actos (como os vi nas respostas nas notícias em jornais de Portugal - note-se que aqui não se viu nada disso).

Vamos continuar a viver e aproveitar Christchurch e a Nova Zelândia. Apesar de tudo que aconteceu irei continuar a dizer que é uma cidade super pacífica, porque é... isto é totalmente o OPOSTO do que é a cidade. Ainda tentar apoiar de alguma forma aqueles que foram vítimas deste ataque terrorismo que em NADA reflecte o que se sente no dia a dia na Nova Zelândia.

E gostaria de enaltecer o trabalho da Polícia e autoridades, que num momento como este soube responder e prender o terrorista rapidamente mesmo sendo um evento sem igual na história das últimas décadas no país.

Kia Kaha Christchurch...


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