A "Santa Ignorância" de se ser emigrante...

Antes de contar a história de hoje vou começar por explicar como funciona a recolha de lixo na cidade de Christchurch, a cidade onde vivemos.

Ao contrário de todos os locais onde já vivi até hoje, seja em Portugal ou nos Países Baixos, o lixo doméstico é individual (por casa). Por exemplo, no Porto, a recolha de lixo é feita através contentores na rua (em locais fixos) onde cada pessoa põe o seu lixo doméstico do dia, e que é recolhido ao final desse mesmo dia (com excepção aos fins de semana). Ainda existem diversos locais pelas cidade onde é possível deixar materiais que podem ser reciclados (papel, plástico, metal ou vidro).

Bastante similar com o Porto, em Delft não existia uma recolha diária mas existiam pequenas caixas na rua onde se depositava o lixo, que na realidade eram enormes contentores subterrâneos. Este contentores eram despejados algumas vezes por semana. A reciclagem não era tão eficiente como em Portugal mas era também possível reciclar algumas coisas.

Em ambos os sítios ainda existia a modalidade (hoje em dia obrigatória em alguns sítios, como era em Leça do Balio para nós) dos prédios terem os seus próprios contentores para todos os moradores e onde é feita a recolha do lixo.

Em Christchurch (e que eu saiba na Nova Zelândia, pelo menos Ilha Sul) é totalmente diferente. Cada pessoa é responsável pelo seu lixo e pela sua quantidade. Cada casa ou apartamento tem direito a três contentores pequenos (wheelie bins), um amarelo (para reciclagem), um vermelho (para lixo) e um verde (para orgânicos). Deixo aqui uma imagem para terem uma ideia.


Em cada rua a recolha é feita num dia da semana específico. Por exemplo, na minha rua actual é segunda-feira. Podia-se pensar que recolhiam os três todas as semanas, mas na realidade só o verde é recolhido todas as semanas. O vermelho e amarelo são recolhidos alternadamente (numa semana é o vermelho e noutra o amarelo). Assim o lixo que se produz em 15 dias tem de caber numa contentor vermelho e o mesmo para a reciclagem (com um contentor ligeiramente maior). O material orgânico é recolhido todas as semanas.

COMO FAZER:
Cada pessoa, na véspera do seu dia de recolha, põe os caixotes cheios na rua (verde mais o da cor correspondente) e, na madrugada do dia de recolha, um camião com o braço especial pega nos caixotes, esvazio-os e (se não os fizer voar ou atirar para o chão com estrondo) coloca o caixote gentilmente de novo na rua, desta vez vazio. No mesmo dia a pessoa tem a obrigação de recolher os seus caixotes de volta para casa ou jardim da propriedade (ou para a porta de sua casa, se não for directamente na rua).

Se houver excesso lixo tem de se ir entregar a uma "refuse station", basicamente o sítio onde se entrega o lixo. Para a reciclagem isto é gratuito mas para lixo (orgânico ou não) tem de se pagar.

Ou seja num dia vemos todos os caixotes da mesma cor na rua, e no final desse dia já não está nenhum (a não ser que alguém seja mais preguiçoso e só recolha o seu caixote vazio um ou dois dias depois).

É um modo interessante de fazer recolha de lixo, não me desagrada e fácil de entender.

Voltando à minha história:
Tenho a certeza que quem está a ler isto de certo que já se considera um doutorado em lixo na Nova Zelândia. Agora vamos fazer uma viagem no tempo para a nossa primeira semana na Nova Zelândia, há perto de três anos:

Acabados de aterrar há dois dias e ainda quase sem contacto com Kiwis (demoramos uma semana até começar a trabalhar) ficámos na casa de uma das nossas empresas. Entregaram-nos as chaves e levaram-nos até à casa. Óbvio que ninguém nos explicou aquelas coisas básicas como, o que se faz com o lixo. De novo, o doutorado que está a ler isto agora pergunta-se como é possível nós não sabermos esse básico mas este post ainda não tinha escrito. Assim ao final de dois dias saímos os dois para a rua em busca do contentor para pôr o lixo da casa (nota: os contentores da nossa casa estavam na garagem, a qual só entramos ao fim de 4 dias, depois de comprar o carro).

Andamos por uns minutos pelas ruas da cidade (note-se que Christchurch é quase só moradias), de saco de lixo na mão, e a perguntar (leia-s, reclamar) como era possível não se encontrar um único sítio para se pôr o lixo na cidade até que avistamos um bonito e solitário contentor no meio da rua (vermelho). Felizes com o nosso achado, abrimos o contentor, que estava vazio, e para lá pusemos o nosso lixo dos primeiros dias. Objectivo alcançado.

Só umas semanas depois, já depois de os colegas nos terem explicado como funcionava o sistema do lixo, é que nos lembramos desta nossa "primeira vez". É que não só não usamos um contentor que não era nosso, como o usamos depois da recolha. Ou seja, alguém que se "esqueceu" (preguiça) de recolher o seu contentor no dia (sabemos isso porque estava sozinho na rua). Quando foi buscar o contentor para o levar de volta a casa este já levava lixo outra vezes teve de ficar com ele mais duas semanas. Tenho a certeza que nos deve ter rogado mil e uma pragas e insultado umas quantas vezes (como eu o faria agora se alguém me fizesse o mesmo).

Quando falam em emigrantes fala-se de todos os choques culturais e barreiras. Fala-se da lingua, que depois de viver nos Países Baixos sei que pode ser complicado, fala-se da comida, porque aqui e ali não há sequer um bacalhau salgado, ou no nosso caso fala-se da distância.

A mim fascina-me muito mais estas diferenças. Os dados adquiridos que temos na nossa vida e nunca questionámos que noutro lugar são diferentes:
- as marcas que vemos nos supermercados (aqui não temos batatas fritas Lays mas temos as bolachas TimTam, que já não sei viver sem elas),
- os supermercados em si (Continente e Jumbo, Tesco, Albert Heijn e C1000 ou New World e Countdown?);
- o lado em que se conduz;
- a forma como se recolhe o lixo;
- onde se tira um foto para o passaporte (na farmácia);
- como nos cumprimentamos (beijo, abraço, aperto de mão, nada?)

Depois temos aquelas diferenças na natureza que também não estamos à espera. A cor do céu por exemplo, em determinadas alturas do ano, aqui ainda me fascina. E depois há aquelas coisas tão diferentes que nos vamos habituando. Na primeira semana tirei esta foto do Rio Waimakariri, que passa ao lado de Christchurch. Tão diferente de todos os nossos rios em Portugal, mas tão igual a todos os rios aqui da ilha, pelo que é raro agora tirar fotos aos rios. No entanto nunca foi algo que achei que fosse reparar: os aspecto dos rios. Estou certo que um Kiwi que vá a Portugal também irá ficar fascinado com o Douro e no entanto para mim é tão normal.


Emigrar não é só aquela experiência que, para quem vê de fora, é só trabalhar numa empresa estrangeira, a falar em Inglês (no nosso caso) e a fazer uma vida com condições de trabalho diferentes do país de origem (no nosso caso Portugal). Emigrar é um conjunto de mil e uma experiências que não são explicáveis num blog, numa conversa de café ou num encontro anual com os amigos e conhecidos. Muitas fantásticas, outras mais amargas e algumas humilhantes como esta que contei, porque nos apercebemos da nossa ignorância e dos erros que também cometemos para chegarmos onde estamos. Estou certo que se amanhã emigrar parar outros sítio muito recomeça e que quem lê isto no Brasil, no Dubai ou no Qatar teria outras histórias completamente diferentes.

Viver com a mudança faz-nos crescer e ficar diferentes. Faz-nos ver tudo de uma maneira diferente e aceitar tudo como sendo normal e ao mesmo tempo nada como adquirido. Apesar de já ser o terceiro país que vivo, continuo a não me chamar "emigrante", gosto mais de ver a vida como uma aventura, e no entanto apercebo-me que também é isso que nós (emigrantes) vivemos...

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